16.12.06

 

Reforma (RPS)

Todos os dias, a meio da manhã, à hora de abertura do bar, ele aparecia. Pegava no JN, procurava as páginas da necrologia e nelas se detinha por uns cinco minutos. Quando fechava o jornal dizia: vim ver se vinha no jornal, mas não venho... E dava uma risadinha.

De acordo com os mais antigos, era sempre assim, todos os dias, há muitos anos. JN arrumado e lá ia o sr. Moreira embora, no seu passo lento, corpo curvado pelo tempo, mas ar distinto. Andava sempre impecável, ao estilo do seu tempo: fato escuro, gravata com um alfinete brilhante espetado, sempre de pull-over no Inverno. Num dedo, trazia uma aliança e um anel com uma pedra vermelha. O pouco cabelo, sempre muito cortadinho, era branco, e tinha uma careca luzidia - brilhava quase tanto como os olhos azuis que saltavam à vista.

Soube que era o mais antigo "da casa". Nunca percebi bem o que ele fazia nos Serviços Administrativos do primeiro andar. Via-o bater lentamente, numa pesada "azert", umas folhas A4 e a colar selos e fechar envelopes. Ouvi dizer que resistia em reformar-se. Estava nos 70 ou perto disso, mas recusava-se. Alegava ele que se o mandassem embora não durava um ano. Eu estava a entrar na empresa.

Uns tempos depois, não sei se por imperativo da lei ou se por cedência à pressão, o homem lá se reformou. Saiu discretamente, não dei por nada. Só reparei uns tempos depois, quando estranhei a falta dele, a meio da manhã, a ler o JN.

Passados uns meses, chegou a notícia: morreu o sr. Moreira. Soube então que, acabado de se reformar, se tinha fechado em casa. A mulher via-se aflita para o conseguir arrancar de lá. Em pouco tempo, nem da cama o conseguia tirar. Não tinha filhos, mas os sobrinhos passavam por lá com propostas de passeios e de almoços fora que sempre rejeitou. Parece que o coração - fraco há muitos anos - começou a enfraquecer mais e mais. Um dia parou. Tal como ele próprio previra, menos de um ano depois de o terem mandado embora.

Daí para cá, em quase vinte anos de empresa, vários colegas se reformaram. Sempre com uma atitude diferente da do sr. Moreira. Sempre com atitude positiva, porque o tempo e a vida são inexoráveis e vale sempre a pena tentar ver o lado positivo das situações e tirar, em cada uma delas, o melhor partido. Mas em todos eles senti uma mágoa, ainda que disfarçada. Ou mal disfarçada.

Acho que não há nada mais traumatizante na vida que uma pessoa reformar-se.
Por isso, choca-me ver pessoas - muitas com 40 anos ou mesmo 30 - falarem da reforma como uma coisa maravilhosa. Nunca entenderei.

Comments:
RPS,
Eu já passei dos 40 (um niquinho!!!) e continuo a achar que a reforma há-de ser uma coisa maravilhosa.
Não quer dizer que não venha a ter saudades de muitos colegas de trabalho, de bons momentos vividos em comum e até de algumas "chatices" partilhadas, porventura também.
Mas o luxo de ter tempo para outras coisas boas (cinema, leitura, visitas, exposições, escrita, trabalho de voluntariado...) pode ser positivo.
Ninguém tem de reformar-se e meter-se na cama dia e noite.
 
Aqui dizemos "aposentar-se".
E há dois tipos de aposentados: os que conseguem, com os proventos de aposentadoria curtir a vida, já que agora têm tempo e dinheiro para tanto; e os que só conseguem comprar remédios e pagar suas contas, com os proventos de aposentadoria. Estes últimos estão em muito maior número.
É lamentável, essa realidade. Por isso, são poucos os que ficam ansiosos por se aposentar. Geralmente se aposentam e continuam trabalhando, porque é assim que conseguem manter o orçamento em dia. Muito triste.
 
rps, gosto mt do post (vê-se que é mt sensível e observador, poucas coisas lhe passam ao lado...); e lamento o fim dessa pessoa. Mas julgo que nem todas as reformas são assim... Tenho exemplos mais positivos.
 
ao ler este post lembrei-me em primeiro lugar de um senhor, já bem velhinho, o Sr Leites.
quando eu estava a ler o JN no café onde paravamos ele pedia-me sempre para ver a página dos que deixaram de fumar!
um dia ele deixou de fumar os seus LM lights. com muita pena minha só soube disso uns meses mais tarde. (já tinha deixado de frequentar o tal tasco)

mas lembrei-me do meu padrinho.
depois de uma vida feita "na cidade" reformou-se cedinho e voltou para a sua terra natal em Trás-Os-Montes.
só vos posso dizer: farta-se de curtir desde que se reformou: arranja empregos marados, tem tempo para a mulher e netos e ainda no outro dia partiu uma perna quando andava a podar não sei o quê!
diverte-se bem mais agora do que quando trabalhava!
 
Boa e triste história, men!
 
Concordo plenamente contigo. É óbvio que há casos e casos, mas eu nem quero ouvir falar nisso. Não me imagino sem trabalhar, a velhice e sobretudo a inactividade assustam-me muito...
 
Eu penso na reforma de uma forma positiva. Quando chegar o momento, sairei com uma enorme vontade em fazer algumas coisas que a minha actividade profissional não me permitiu fazer! Por exemplo? Viajar com mais frequência, lêr mais, ver mais cinema, ouvir mais musica!

Saudações infernais!
 
aiaia entendo.te
a reforma vista assim , como tempo / vida gasta..perto do fim.... enfim....

mas olha q entendo perfeitamente quem se quer reformar aos 40....aí não há stress:)))))))) e haveria tempo.................o que falta aos que vão para ela, já mortos...ou quase......

ops não sei se me fiz entender...td bem.....baralhei.me, mas ..................ok fica assimmmmmmm

quero a reforma já.............

jocas maradas e natalicias
 
Belíssimo post!
 
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