10.9.05
Desviozinho (RPS)
Confesso que acho uma chuchadeira aqueles blogues em que se sucedem poemas. Não faz o meu género. Por duas razões:
a) não gosto de blogues do género diário íntimo ou espelho da alma. E acresce que nunca foi essa a ideia de JPF quando, em boa hora, fundou o Fado Falado.
b) em boa verdade, não sou grande apreciador de poesia, embora goste muito de alguma (pouca) poesia.
Comecei a blogar no início do ano e nunca pus aqui nenhum poema. Mas alguma vez tinha que ser. É hoje. Apetece-me. É só um desviozinho à linha tradicional.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião
qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos
dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há
aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do
alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
(Álvaro de Campos)
a) não gosto de blogues do género diário íntimo ou espelho da alma. E acresce que nunca foi essa a ideia de JPF quando, em boa hora, fundou o Fado Falado.
b) em boa verdade, não sou grande apreciador de poesia, embora goste muito de alguma (pouca) poesia.
Comecei a blogar no início do ano e nunca pus aqui nenhum poema. Mas alguma vez tinha que ser. É hoje. Apetece-me. É só um desviozinho à linha tradicional.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião
qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos
dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há
aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do
alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
(Álvaro de Campos)
Comments:
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Zzzz.... rrrrronc... Zzzzz... rrrronc... Hã? Quê?! Já é de manhã?? Oops... É a primeira vez que adormeço aqui no Fado...
Parvoíces à parte, ainda um dia hei-de tentar perceber o conceito dos blogues cheios de poemas...
Parvoíces à parte, ainda um dia hei-de tentar perceber o conceito dos blogues cheios de poemas...
(...)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me energético,convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o destino mo conceder,continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz)(...)
um beijo
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me energético,convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o destino mo conceder,continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz)(...)
um beijo
Eu gosto de poesia. O que eu nem sempre gosto é das pessoas que gostam de poesia. Mas, pensando melhor, gosto ainda menos das pessoas que não gostam de poesia.
Venham de lá mais poemas.
Parabens. Um abraço
Venham de lá mais poemas.
Parabens. Um abraço
Também n alinho mto no esquema dos poemas pseudo-intelectuais mas de vez em qdo até é bom...
Abraço grande e já tens link na Zona Franca. The Bar is open!
Abraço grande e já tens link na Zona Franca. The Bar is open!
...Tu sabes... Até gosto muito de ti!!! No fundo, no fundo esse coração gosta de ser "apalpado" pela nostalgia e romantismo... eh eh eh... há sempre um pouco em todos nós...!
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