4.7.05

 

Quando eu conheci Álvaro Cunhal (RPS)

Fiz a minha primeira campanha eleitoral em 89. Campanha da CDU, nas eleições para o Parlamento Europeu. Carlos Carvalhas era o número um de uma lista onde, entre outros, estavam Barros Moura, Joaquim Miranda e uma qualquer daquelas verdes do costume. Álvaro Cunhal era secretário-geral do PCP.

O meu Director de então instigou-me a conseguir uma entrevista com Álvaro Cunhal, na noite eleitoral. Pelos vistos, nunca Cunhal nos tinha dado uma entrevista ou prestado declarações em exclusivo. Era tempo de superar os traumas de 75.
A minha geração e mesmo alguns veteranos já olhavam para isso como "episódios arqueológicos" e, do lado do PCP, havia também outra abertura. Sinal dos tempos: em Moscovo, Gorbachov tinha posto em marcha a perestroika, pressentia-se que a hora era de mudança, ainda que não se suspeitasse que tudo iria processar-se tão depressa.

Carlos Carvalhas foi comigo, desde a primeira hora, de uma correcção extrema. Simpático, afável, colaborante, respeitando sempre os campos em que cada um se movia. Na mesma linha agiu toda a "entourage" do PCP: um tal Judas, irmão do outro, dos serviços de imprensa do PCP, e a Paula Barata, ainda hoje assessora do Grupo Parlamentar. O PCP estava claramente interessado em ter bom relacionamento connosco.

Logo nos primeiros contactos, ainda na pré-campanha, falei a Carvalhas no objectivo de entrevistar Cunhal. Respondeu-me que iria ver, depois dizia-me.
A "coisa" era tão mais importante para mim quanto Cunhal estava "desaparecido" há meses. No início do ano tinha-se deslocado à União Soviética para ser submetido a uma delicada intervenção cirúrgica a um aneurisma. A informação fornecida pelo PCP resumia-se ao essencial: tinha corrido tudo muito bem, estava bem, a trabalhar.

Ao terceiro dia de campanha, Carvalhas disse-me que tinha falado do assunto e estava tudo combinado. Aliás, apresentar-me-ia "ao camarada Álvaro Cunhal" daí a dois dias, na Marinha Grande. Seria a primeira aparição do secretário-geral na campanha, também a primeira aparição pública desde a viagem e a operação em Moscovo. Carvalhas aconselhou-me: "não fale nada da entrevista, isso é tratado pelos serviços do partido.". OK.

Cunhal lá apareceu, ao quinto dia da campanha, num qualquer pavilhão da Marinha Grande para um mega-jantar. Perto do fim, Carvalhas, à direita de Cunhal numa mesa, chamou-me com um aceno. Quando me aproximei, por trás dos dois, Carvalhas bateu no ombro de Cunhal: "Álvaro... Quero apresentar-te um jornalista que está a acompanhar a nossa campanha...".
O mítico Cunhal voltou-se. Estava ali à minha frente, sorriso aberto. Carvalhas fez as apresentações, anunciando a "minha ficha" e sem me dizer, claro, quem era o outro.
Cunhal apertou-me a mão, afável e decidido. Olhou-me (é verdade, o homem tinha um olhar que nos atravessava) e perguntou, de rajada, ao puto de 25 anos: "É a primeira vez que está numa campanha com o nosso partido?...". Anuí. "E que me diz?... É ou não é um grande partido?!". Balbuciei que sim, que era...

Estava "à rasca", é certo. Não queria mesmo ter dito aquilo - bolas! - mas, felizmente, tinha uma saída brilhante na manga, preparada ao longo dos últimos dias: "E o senhor doutor como está? Já recuperado do problema de saúde?...".
Cunhal deu uma risada e, com vários movimentos de cabeça, olhando em volta, como que procurando alguém, atira: "Mas está aqui alguém doente?... Aonde? Aonde?...".
Já não consegui dizer mais nada e foi o próprio Cunhal a sair em meu socorro: "Fica para o comício?...", perguntou... "Sim, sim...", respondi, com a cabeça a cem à hora procurando qualquer coisa mais para manter conversa, mas ele não deu tempo: "então, bom trabalho para si.", correu ele comigo, dando-me umas palmadinhas no braço.


Foi o meu primeiro contacto "directo" com Cunhal. Só tive mais um: na noite eleitoral, com a entrevista prometida por Carvalhas.
No próprio domingo das eleições, ao chegar à sede do PCP na Soeiro Pereira Gomes, um funcionário garantia: "ele só fala à RTP e a si, não dá entrevistas a mais nenhuma rádio nem a ninguém.". Assim foi. Cunhal entrou para o estúdio montado pela RTP (então televisão única) no rés-do-chão da sede do PCP e eu subi ao primeiro piso, para a sala onde estava montado o nosso estúdio. Não consigo lembrar-me de quem era o técnico que me acompanhava. Só me recordo da estagiária que me apoiou nessa noite: uma tal Anabela Góis, bonita, elegante, cheia de charme. Vi, nessa noite, muito marxista-leninista deitar-lhe olhares lascivos.
Nervoso, aguardei uns quinze minutos que pareceram horas, mas, finalmente, ele - Cunhal - apareceu à porta, por trás da silhueta da estagiária Anabela que o tinha conduzido desde o rés-do-chão até ali.
Correu tudo bem. No nosso primeiro encontro, ganhara Cunhal. No segundo, se houve vencedor, fui eu.
Claro que não tenho cópia dessa entrevista histórica. Talvez um dia a solicite ao PCP. Ou a Germano Campos, que também a deve ter.
Ah!... Já me esquecia: obrigado, Anabela.

Comments:
É este o estranho destino dos blogs.
"Quando eu conheci Álvaro Cunhal" é talvez o teu melhor post e ninguém o comenta. Se calhar é por isso. Quando vemos algo próximo da perfeição quedamo-nos em silêncio e admiramos. Só.
 
E eu sublinho e repito: "Quando vemos algo próximo da perfeição quedamo-nos em silêncio e admiramos. Só."
 
Realmente um belo post! Lembra-me a primeira (e única) vez em que vi de perto Álvaro Cunhal, numa Faculdade de Letras apinhada para o ouvir falar sobre... Estética. Um dia também "posto" sobre isso.
 
era o maior, o camarada Álvaro!
 
Obrigado RPS. Li 3 vezes.
 
Muito bom. Elucidativo. Arrepiante. Definitivamente, não deixa saudades...
 
uma onomatopeia de admiração: uaaaaaauu!!!
imagino que nao respondas aos comments, mas tens de me dizer um dia se não te importas de ser meu amigo...
hoje ouvi-te à 1h. :)
 
O camarada ABC foi o alter ego de Estaline,

Estaline que emulou Hitler na perfeição, quiçá com vantagem - pois ganhou, para assassinar muitos mais

ABC era admirável - como monstro

E tal comos os exemplos anteriores é-lhe reconhecido um valor: coerência

Todas as maiores bestas têm sido coerentes - infelizmente
 
O camarada ABC foi o alter ego de Estaline,

Estaline que emulou Hitler na perfeição, quiçá com vantagem - pois ganhou, para assassinar muitos mais

ABC era admirável - como monstro

E tal como os exemplos anteriores é-lhe reconhecido um valor: coerência

As maiores bestas têm sido coerentes - infelizmente
 
Cunhal era uma bestiaga

Manipulador implacável, vampirizou as fraquezas alheias

O seu ideário comunista foi cozinhado com ódio e inveja

Bem fraca receita
 
Este post nada tem de político, caro anónimo.
Excelente posta!
 
Esta posta claro que não é política mas é sobre uma estagiária.
 
Aiii estes são os filhos da Nação.....
Parabens RPS é talvez por esta tua maneira de veres a profissão que nos entendemos..quanto ao técnico talvez tenha sido o saudoso Augusto Lira.
Abraços

Inspector
 
Caro Inspector...

O Lira não foi de certeza. Talvez o Mário Santos ou o Losna... Não sei mesmo...

Este post, de facto, não é sobre política nem, como diz para aí um sem-rosto, sobre uma estagiária. É, inspirando-me em dizer recente de Rui Batista (www.amor-e-ocio.blogspot.com), mais um exercício onanista de um plumitivo.
 
Amigo eu não disse que era sobre politica considero até mais sobre relações humanas sentimentos quanto ao técnico tens razão ou um ou outro o Lira não.
Abraços
Inspector
 
E felizes onanismos quando aos outros aproveitam assim!
Mas que tal o Partido?
É grande!
E com que então os M-L também têm olhares lascivos!? Não esqueçamos que - principalmente naquele tempo - as Comunas tinham farta bigodaça, calçavam galochas e vestiam macacão (ver Z de Zita).
Agora já não é assim... hehehe
 
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