7.6.05

 

Povo que lavas no rio (RPS)

Foi em 91. Ou 90, ou 92.
Mário Soares montou Presidência Aberta em Viana doCastelo.
Coube-me acompanhar em full-time, depois da experiência de um dia ou dois,alguns anos antes, em Coimbra. Já era quase veterano, a coisa fez-se.

Recordo um domingo de programa diminuto, coisa rara.
O ponto principal do dia presidencial consistia de uma homenagem póstuma aPedro Homem de Melo, em Afife.Local: uma casa, não sumptuosa, mas com ar nobre. Bonita, pintada de branco,com portadas verdes, rodeada por árvores frondosas. Pertencia a uns sobrinhos do poeta e divulgador do folclore português. Presumo que fora pertença do próprio Homem de Melo. Pelo menos, era "a casa dele em Afife".

Aquele Setembro estava quente, mas nesse domingo arrefecera e chovera.À tarde, o sol lá se mostrou. Espreitava a custo, entre a densa folhagem das árvores, num espaço que já não era grande e se revelava acanhado para tanta gente, acumulada entre o portão da rua e a entrada principal da casa.A terra molhada poupava-nos à poeira.

Ouvia-se água a correr numa fonte. As pessoas faziam um silêncio quase sepulcral. Numas colunas de som passava, baixinho, "Povo que lavas no rio" e outros fados com letras do poeta e cantados por Amália. Ela também estava lá, de vestido escuro. Preto, salvo erro. Não sei porquê, mas achei que Pedro Homem de Melo também lá estava.

Para fazer o elogio do homenageado, Mário Soares convidou Eugénio deAndrade.Quando me lembro desse discurso, não me perdoo a minha desorganização: não sobrou um papel, um rascunho, uma gravação fanhosa que fosse. Se sobrou, não sei onde está ou se ficou pelo caminho, numa das muitas mudanças de casa.

Nunca ouvi discurso assim. Entre palavras aparentemente elogiosas, Eugénio - sibilino, cínico - desfazia o homenageado.
De modo magistral, tecia elogios a "outros poetas" que não identificava. Não eram outros poetas, era simplesmente ele próprio, Eugénio, egocêntrico e intratável.O incómodo de algumas pessoas era evidente. Mário Soares mexia-se, nervoso.Os jornalistas trocavam olhares... Só Amália mantinha o ar sorridente.A dado ponto, Eugénio não resiste à estocada final: "Pedro Homem de Melo, o maior dos poetas menores."...

À hora de jantar, no Hotel Santa Luzia, os assessores de imprensa do Presidente, com Estrela Serrano particularmente activa, procuram conversa com os jornalistas. Tinham a evidente preocupação de passar uma mensagem: o Presidente tinha sido surpreendido, nunca pensou que "o Eugénio fosse fazer uma coisa daquelas...".

Continuo convicto de que Pedro Homem de Melo estava lá de início.No final, procurei-o. Em vão. Mas entendi: um gentleman não iria estragar a festa e, por isso, saiu mais cedo, para não se cruzar com Eugénio.

PS: deste momento recordo ainda uma "grande" peça, no Público do dia seguinte. Assinada por José Alberto Lemos. Antes, claro, de ser ter aburguesado completamente. Um abraço, JAL, e desculpa ter roubado o título da tua peça, mas, como também o roubaste...

Comments:
Na verdade, Pedro Homem de Melo só poderia lá estar em espírito, já que morreu em 1984. Foi colega de um familiar meu no liceu Infante D. Henrique, numa altura em que andava a vender um dos seus livros na sala de professores, apregoando: "Compre colega, que sou poeta pobre!"
Era realmente um personagem!
 
Pedro Homem de Melo faz parte do meu imaginário infantil.Fazia um programa sobre as raízes folclóricas na tv... foi aí que aprendi a gostar do que de melhor se pode aprender sobre um país, sobre um povo, uma região...Bom poeta, sempre poeta!
 
Eu sei, Aristóteles, que ele morreu nos 80's. Aliás, a homenagem era póstuma...

O homem era um personagem, de facto. Bastava vê-lo caminhar pela baixa ou no Ateneu, onde me cruzei com ele numa ida ou outra esporádica ao Palacete de Passos Manuel, nos 70's.
 
uaaau! em 91 tinha praí 8 anos... :)
 
Salvo o erro foi em 91. Estava lá, também. Teria 21 anos...
E esses dias trazem-me boas recordações. Como, por exemplo,
certo jantar na Pousada de Santa Luzia, em Viana, onde, pela primeira vez vi Sophia Mello B. A.(faço ligeira vénia). Vi a mulher, a musa, a deusa...
Tinha intenção de lhe falar mas não consegui. Escrevi-lhe uma carta que nunca lhe cheguei a enviar. Há coisas que deixamos de fazer que nunca voltamos a poder fazê-las.
Banalidade: é a vida.
Gostei de ler esta tua memória RPS :)
 
Mário Soares, Eugénio de Andrade, Estrela Serrano...que horror!
Suponho que hoje, 14 ou 15 anos depois, o ar ainda esteja Poluído em Afife.

Tal como sucede com o (ou devo dizer a?)Pipas Bubbles, Pedro Homem de Melo e o seu programa de folclore também fazem parte do meu imaginário infantil. Só que eu detestava esse programa, que antecedia sempre, aos Domingos, a minha série de desenhos animados favorita: "Sinbad, o marinheiro".
Nunca mais tive oportunidade de rever o programa do folclore (como era mesmo o seu nome?). Não sei se hoje o apreciaria.
Tive oportunidade de rever, há meia dúzia de anos, os ditos desenhos animados do "Sinbad". Eram uma coisa aterradora, imprópria para o consumo de quem quer que não fosse atrasado mental.
Por causa da sua voz inconfundível, não havia imitador de feira que não mimasse Pedro Homem de Melo.
 
Desculpem, mas tenho uma corda sensível (ou mesmo várias) e gosto muito, muito de ler (e de ouvir) Pedro Homem de Mello. Mas não me lembro nem um bocadinho de um programa com ele na TV...talvez pq fosse demasiado gaiata.

Agora, Funes já aqui o disse, M.Soares e a sua corja...mas que mal fez Afife para merecer?

Enfim, de Eugénio de Andrade não falo. Bem bastou ter de ler a Antologia para entrar para a Faculdade, nos tempos em que ainda era difícil... Não mereço mais castigo.

Sempre um prazer ler-te RPS!
 
Nem sempre é um prazer ler-te RPS -eu gosto bem mais de te ouvir - mas hoje foi.
Abraço
Pepino

PS.Se virem por aí uma Beringela avisem...
 
ZekezCarvalho said:também para mim foi um prazer ler-te RPS. estás em grande forma a escrever e nestes pots gosto mais de te ler no estilo poetico-saudosista do que nas apóstrofes... Pedro Homem de Melo também faz parte do meu maginário infantil: o meu avô obrigava-me a ver o programa e eu gostava do apresentador e das suas apreciações mas não gostava do folclore (os "ranchos"). Quanto ao Eugenio de Andrade, na minha modesta opinião, é o menor dos poetas menores que se julgam grandes...
 
ZekezCarvalho said:também para mim foi um prazer ler-te RPS. estás em grande forma a escrever e nestes pots gosto mais de te ler no estilo poetico-saudosista do que nas apóstrofes... Pedro Homem de Melo também faz parte do meu maginário infantil: o meu avô obrigava-me a ver o programa e eu gostava do apresentador e das suas apreciações mas não gostava do folclore (os "ranchos"). Quanto ao Eugenio de Andrade, na minha modesta opinião, é o menor dos poetas menores que se julgam grandes...
 
Meu bom ZekezCarvalho...

Como folgo em encontrar-te por aqui!

E como folgo ver-te particularmente opinativo! Coisa rara...

Neste caso, é sobre Eugénio de Andrade. Conheço pouca coisa dele e não consigo formar uma opinião. E - não sei porque raio - tenho a sensação que, mesmo que conhecesse mais e melhor, iria continuar dividido.

Volta sempre e não domines esse teu sentido crítico acutilante.

Um abraço.
 
Caríssimo Funes...

1 - pipas bubbles é no feminino

2 - presumo que o progama do PHM se desiganva "Danças e Cantares".
Não sei se sempre, mas, por vezes, era feito em directo a partir dos estúdios da RTP, no Monte da Virgem.
De Verão, os ranchos folclóricos exibiam-se no largo defronte ao edifício. Ao velho edifício.

3 - a sensção que tenho é a de que o programa era transmitido a seguir ao TV Rural e antes da Tarde de Cinema, nas quais vi muitos filmes do Totó, do Luis de Funés e também da Shirley Temple.

4 - as imitações de voz do PHM eram habituais nos programas e rubricas dos Parodiantes de Lisboa.
Lembro-me de um nome: Mêna Matos. Era imitador de vozes, presumo que também nos Parodiantes.
Era também frequentes imitações das vozes do engº Sousa Veloso, do António Lopes Ribeiro e do Vitorino Nemésio.
 
"Era também frequentes imitações das vozes do engº Sousa Veloso, do António Lopes Ribeiro e do Vitorino Nemésio"

E do Alves do Santos, relator de futebol que, nessas ocasiões, era referido como Alves dos Cantos.
 
1 -"a sensção que tenho é a de que o programa era transmitido a seguir ao TV Rural e antes da Tarde de Cinema, nas quais vi muitos filmes do Totó, do Luis de Funés e também da Shirley Temple"

A mim, a memória (menos exacta do que a do verdadeiro filho de María Clementina Funes) falava-me antes de um programa ao Domingo ao fim da tarde, antes de um outro de David Mourão Ferreira (Imagens da Poesia Europeia) e muito antes do de José Augusto, intitulado "Domingos na Europa", que dava depois do telejornal, a anteceder imediatamente a série "os companheiros de Baal".

Mas agora que falas, creio que tens razão. Era ao início da tarde.

2- "o menor dos poetas menores que se julgam grandes" é uma bela e precisa definição de Eugénio de Andrade, apesar de a expressão "Daqui houve nome Portugal" ser também muito bela.
 
...posso ser tudo o que quiserem
velho baboso, pseudo sensível, pederasta miserável.
mas, poeta castrado - NÃO !

Onde é que eu já ouvi isto ó Funes, Zekez, RPS ?
 
Soa-me a Ary dos Santos. É.
 
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