23.9.05

 

Para quem não quer ouvir mais nada

O rádio ainda anda por lá, na mesma cama branca. Tinha uma botoneira muito física e pouco digital. E uma vaga luz amarela vagueava pelas frequências da Onda Curta e Média com essa coisa do FM ainda com poucos postos.

Nessa caixa roufenha, o meu pai habituou-se a ouvir rádio até adormecer. Tal filho, nesse lendário transístor de pouca antena, eu imaginei um mundo exterior. Como se no apartamento de infância só coubesse a ditadura do meu bairro e amigos de prédio, um clube, uma lancheira de comida preparada para o almoço, uma vista para o Bugio e navios sempre buzinantes na boca do estuário pela noite. Sempre a noite.

Com o abandono da cidade, fui entregue ao silêncio de uma aldeia onde o FM não chegava para o meu contento. Naquele contentor de solidões onde dormi na esperança da ressurreição urbana, aprendi a manejar a velha Sharp cinzenta, de som magnífico. Foi o tempo das grandes noites europeias, vitórias ouvidas num buraco serrano à custa dos narradores cujos emissores menos grão traziam à pureza altifalante. A Antena 1 foi a estação escolhida, com António Pedro, Costa Martins e outros, depois as sagradas noites de sexta-feira, escutando o Livre e Directo. Pela noite, sempre pela noite.

Pela uma da manhã, já com um transístor americano de boa recepção, fui fazendo culto do Som da Frente. No patamar de cidade a que tive direito na adolescência, gramei todo o tipo de rádio pela noite. Às escondidas dos pais, cheguei a entrar em directo para a Comercial e ganhei um livro de arbitragem por ter acertado numa regra de fora-de-jogo ! E ainda me lembro de ouvir programas do Rui Castelar, muito virados para a noite borguista e comezaina, com ligações em directo a discotecas!

Nessa cidade a que devo mais do que quero, passei centenas de horas e horas na noite da rádio. O primeiro programa que me deixaram assinar, em 91, chamou-se Lusitânia e muitas, muitas pessoas lembrar-se-ão dele. Foi o meu primeiro “filho”, feito à noite, contra a opinião dos pais e de muita gente que achava que a rádio era para agradar às pessoas, dando o que elas queriam ouvir e não o que era inovador. Ainda hoje ouço este tipo de debates no meu actual local de trabalho, década e meia depois.

Já do lado de dentro da rádio, fiz quase tudo nesses anos. Incêndios, missas, entrevistas, relatos de futebol, sátiras radiofónicas, antena aberta para vadios, passagens de ano, Carnavais, até programas de música-para-amar (como aquele programa que estão a ver qual é mas não me apetece citar para não me obrigar a dizer que é e sempre foi uma bela merda ).Este ano consegui mais umas proezas. Nunca tinha feito emissão de um funeral, mas tocou-me a trasladação do Papa e depois o fim do Conclave. Mas há tanto para fazer…

Como ouvinte, a noite trouxe-me o António Sérgio e depois o Rui Vargas, o marcante Vargas de tanta gente de hoje. Foi no Margem de Certa Maneira que ouvi uma fabulosa versão de Transmission, dos Joy Division, pelos Low.

Mais tarde, quando saí de casa para a grande cidade, a noite da Rádio foi sobretudo a descoberta do Luís Mateus (que morreu estupidamente cedo e teve um magnifico concerto póstumo de homenagem que guardo religiosamente em cassete) e também a Inês Menezes, que antes de se estabilizar na manhã, fez umas madrugadas onde descobri o emergente e extraordinário Jeff Buckley, noutra fabulosa versão, “Hallelujah” do velho Cohen.

Foi tempo da XFM - no seu lançamento- e também do Henrique Amaro na 3, incontornável para quem como eu tinha estado no circuito de programas de rádio de MMP no princípio dos anos 90. E isso é uma coisa que de que me orgulho muito.

A última vez que fiz um programa de autor foi uma perninha em Torres Novas, para ajudar, nos intervalos da minha entidade patronal nacional. Chamava-se Bebop, e arriscando a imodéstia sempre me pareceu um belíssimo programa de jazz, feito a meias com o Paulo Silva, companheiro de muitas batalhas pela música portuguesa em terras mais orientadas para a bebedeira, os cavalos e a grunhice do hard-rock.

Ainda hei de recuperar esses dois programas, o Bebop e o Lusitânia. São meus “filhos”, pronto.

Para já vou, como digo com RC desde as aventuras matutinas, para o sofá da rádio.
Regresso à noite, falando para quem nos escuta porque não quer ouvir mais nada.

Comments:
Bela posta, JPF!

Um dia, contarei as minhas memórias do lado de fora da rádio, apesar de serem bem menos intensas, bem menos marcantes que as tuas.
E, claro, também são de outras terras e de outro tempo um pouco - só um pouco - mais antigo: o tempo da velha Comercial, com o Rock em Stock, do Barrinhos, o Som da Frente e o Discoteca, com Joaquim Gonçalves (?)
 
Quem me dera um dia também ter assim umas memórias para contar...
 
Transístor é mesmo a palavra certa...Q mta gente já esqueceu...
Excelente escrita!

Abraço da Zona Franca
 
Belo post jpf.
Continuo a achar que a radio serve para introduzir algo de novo e não apenas para dar aquilo que todos querem ouvir!
A revolução faz-se por dentro!!!!!

(XFM, saudades!!/ Henrique Amaro?!?... arrgh!!!)
 
Nunca cheguei a ouvir o teu jazz - estava longe da terra - mas ainda apanhei o Lusitânia. Esses anos [80 e, vá lá, principios de 90] foram, de certo modo, os "dias da rádio" à portuguesa
 
Belo post. Assim se faz a escrita, que é feita das memórias.
Eu que no entanto tenho muitas escritas, tenho poucas memórias.
Mas lembro-me de uma rádio desempoeirada que se escrevia com nome de jornal: CM Rádio, onde ganhou vida o brilhante Nuno Markl, e a sua peúga atómica. Ele é também inesquecível.
 
O sofá ainda existe. Às vezes basta parar para sentar. Obrigado por me lembrares do Sofá
 
Mas quem é JPF?
 
Caro Anonymous,
a questão é... quem se julga JPF?
 
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